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Quando um cardeal pensou o “Brasil que queremos”

Foto do escritor: FrizzoFrizzo

Dom Paulo Evaristo Arns | foto: reprodução da internet

Resumo

Este artigo revisita as páginas elaboradas pelos participantes da I Semana Social na tentativa de, não somente expor o alto grau de liderança exercida pelo nosso cardeal dom Paulo, como, mostra o mais fino tato de uma Igreja que se formou e se fortaleceu tendo como eixo a opção preferencial pelos pobres, pelos grupos excluídos de uma sociedade que machuca os pobres, vistos em frias estatísticas. Certifica toda altivez e capacidade de um religioso amante da justiça, amoroso com as pessoas e com a natureza. Dom Paulo falou além da Igreja de seu tempo. Foi ouvido e lido pelos mais diferentes setores da sociedade. Fomos buscar as marcas de uma Igreja servidora e essencialmente profética, com bem enfatizava esse “Pastor da Esperança”. Sua profecia e sua empatia transformaram sua obra atemporal.


Abstract

This article revisits the pages elaborated by the participants of the I Semana Social in an attempt to, not only expose the high degree of leadership exercised by our Card. Dom Paulo, but also see him as someone who shows the finest touch of a Church, which was formed and made strong by having as its axis the preferential option for the poor and for the groups excluded from a society that harms them, as it can be seen in statistics. It certifies the lordliness and capacity of a religious lover of justice, caring to people and nature. Dom Paulo spoke beyond the Church and his period. He was heard and read by the most diverse sectors of society. We have searched for the stamps of a serving and essentially prophetic Church, as this “Pastor of Hope” emphasized. His prophecy and empathy transformed his timeless work.


Introdução

Cerca de 20 anos após sua realização[1], repaginar as conclusões daquela I Semana Social adquirem dois sentimentos significativos. O primeiro está em perceber a criatividade e determinação da força da pastoral de conjunto praticada pelas Pastorais Sociais - intimamente enfronhadas nos cenários dos grandes problemas que assolavam a vida de milhões de pessoas. Uma segunda motivação provém da necessidade de apresentar às atuais lideranças a necessidade de continuar atuando por soluções que seguem desafiando os movimentos, partidos e setores organizados e emperram o surgimento de uma sociedade mais igualitária e justa; perceber o quanto é dura a tarefa de evitar que os grandes projetos da burguesia afundem o país no abismo de oportunidades que separam ricos e pobres. Por isso, a necessidade de existirem sempre movimentos de solidariedade.

Nosso intuito foi o de recuperar e apresentar os argumentos dos assessores, as propostas elaboradas durante dias de debates e reflexões pelos participantes divididos em oficinas de temas previamente por eles escolhidos. Cremos ser oportuno expor com veemência o vigor de uma Igreja que tinha à sua frente o dinamismo do Cardeal e pastor dom Paulo Evaristo Arns e, diga-se de passagem, que nunca se esquivou de fazer do povo de sua cidade um recanto de esperança e de profecia.

Em meio a debates e propostas eleitorais

A eleição para ocupar a presidência da república estava agendada para o dia 3 de outubro de 1994. Nos trilhos dos planos traçados pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), os regionais deveriam organizar, simultaneamente, em todo o território nacional, as Semanas Sociais, com objetivo de subsidiar as comunidades católicas nos debates eleitorais. No Regional Sul I, constituído pelas dioceses do Estado de São Paulo, a I Semana Social ocorreu entre os dias 19 a 23 de julho daquele ano. Tratava-se de apresentar ao povo brasileiro as propostas para o “Brasil que Queremos”.

Optou-se por ouvir, por meio de um “laboratório de ideias” o povo de São Paulo, organizados em suas Ong`s, Sindicatos, Associações, Partidos e Comunidades de Base. Findados os trabalhos, percebeu-se que a I Semana Social foi uma grande oficina e proporcionou um diálogo fecundo, com a participação ativa de muitos representantes das mais diferentes expressões religiosas de São Paulo bem como de setores organizados.

No ímpeto de ouvir todo o Povo de Deus contamos com a ajuda intuitiva, inquietante e provocativa de dom Paulo Evaristo Arns. Nosso cardeal, com seu carisma e profundo observador, nos impulsionou a pensar, a partir da igreja paulistana, as propostas para o Brasil. Nosso trabalho enriqueceu os temas debatidos pelos presidenciáveis. No dia do lançamento do livro contendo o resultado daquela I Semana Social, havia uma tarjeta em vermelho, contornando o livro em tom promocional: “Contribuição para o debate dos presidenciáveis 1994, TV Bandeirantes, dia 28/07/94”.

O “mutirão” do Regional Sul I exigiu grandes esforços. Compuseram a Equipe de Coordenação Geral: Karen Simões Monteiro (Pastoral da Juventude), Francisco José Nunes (Serviço Pastoral dos Migrantes), Edson Alex Zittei (Pastoral Operária), Antenor Carlos Rodiva (Cáritas Regional). Ir. Nair Paschoalina e, eu, Antonio Carlos Frizzo, completávamos o grupo responsável por todo o planejamento e execução da I Semana Social. Um grupo de assessores, chamados de “assessores temáticos” foi constituído pelo Eng. José Sidnei Goncalves, Instituto de Economia Agrícola (USP), Prof. Dr. Luis Eduardo Wanderlei (PUC-SP), Pe. Dr. Mauro Batista (Agentes de Pastoral Negros – SP) e pelo Prof. Dr. Ismar de Oliveira Soares (ECA – USP). “Com este grupo, tenho certeza que faremos uma boa Semana Social” dizia sorridente dom Paulo. Não foram outras as intenções do Cardeal. No culto ecumênico que abriu os trabalhos, dom Paulo declarou[2]:

“Minha mensagem é de esperança. O crescimento do empobrecimento brasileiro nos traz à ação para formar um Brasil construído pela ética, abençoado por Deus e apoiado por todos. Digo a todos: não se intimidem em apresentar propostas para o País. Sobretudo neste atual quadro de profundas denúncias de corrupção, envolvendo as mais altas autoridade do Congresso Nacional. Diante de tudo o que estamos vendo, repito: não tenham vergonha de apontar e de sonhar com soluções para o povo brasileiro. A crise não agrada a ninguém.

O empobrecimento tem um nome pelo qual é chamado: neoliberalismo. Um sistema que surgiu como substituto do capitalismo, veio com cara bonita, porém com defeitos do capitalismo e outras mais, resultando numa maior concentração de renda nas mãos de uns poucos.

A sociedade precisa de indivíduos capazes de ir contra a corrente; que em nome da ética, a defendam com normas e práticas autenticas. Que superem os oportunismos, que estabeleçam relações mais humanas, que optem pelo interesse de todos. Bem sabemos que não haverá comportamento ético do indivíduo sem uma dimensão política.

Hoje sabemos que a convocação para a etapa decisiva há de mobilizar todos aqueles que pensam para além das CPI`s e creem num Brasil justo e solidário, numa pátria livre e próspera.

Para tanto, contamos com a benção de Deus, com o apoio de todo o povo que ama nossa terra. Tenham coragem. Bom trabalho para todos”. (CNBB-Regional Sul I, 1994, p.26).

As palavras de dom Paulo estiveram em sintonia com as de dom Eduardo Koaik, então presidente do Regional Sul I. Na oportunidade, o bispo de Piracicaba realçou, em três importantes aspectos em seu discurso de abertura:

1) Não um, mas vários brasis: a compreensão das diversidades impõe um pensamento global do Estado que sonhamos. Cada estado da federação tem seu peso, mas não há como negar a singularidade de pujança econômica do Estado de São Paulo.

2) Diagnóstico da crise: uma análise global da situação econômica, política e social se impõe diante de nossas mentes. Ignorá-las é impossível. Superar a crise é um desafio, mas o maior deles está na superação dos mecanismos que possam realimentá-la. Há os que pensam a crise na esfera meramente econômica. Esses não pensam os “brasis”, mas querem e atuam no aumento de suas próprias riquezas sem nenhuma preocupação com sua distribuição. No atual momento penso que um novo projeto de desenvolvimento comprometido com as aspirações das maiorias excluídas em marginalizadas deve ser procurado. Por este motivo, aqui estamos.

3) Praticamos uma democracia mentirosa: predomina no Brasil um conceito mentiroso de democracia, sem nenhum eco na Constituição Brasileira que brada: “Todos são iguais perante a Lei” (Artigo 5). “Não é verdade que no exercício da cidadania as maiorias desorganizadas, empobrecidas, manipuladas, que perfazem 70% da população, são iguais às elites organizadas e dominadoras. Caminha-se, antes, na direção contrária, para o aumento das desigualdades. E, assim, torna-se cada vez mais difícil a consolidação da democracia” (CNBB-Regional Sul I, p. 30, 1994).

Ao término de seu discurso, dom Koaik, empolgou-nos ao declarar: “Sirvo-me da expressão popular para dizer que “o mar está pra peixe”. Quero dizer: o povo está na expectativa de que o arrastão contra a corrupção, lançado ao mar de lama, recolha em suas malhas os “papa-tudo” do dinheiro público. Vai-se impondo, pouco a pouco, na convivência humana, o respeito à dignidade da pessoa e ao bem comum, bem como o reconhecimento da primazia do trabalho sobre o capital e do principio de solidariedade. Estes valores éticos constituem os pilares do ensino social da Igreja”.

Faço votos que esta Semana Social esteja estruturada na forma de um verdadeiro trabalho de mutirão no qual os participantes se sintam protagonistas. Declaro aberta a I Semana Social do Regional Sul I, da CNBB, Estado de São Paulo.

Oficinas em quatorze centros de estudos:

Os quatro módulos temáticos escolhidos: Desenvolvimento Econômico, Estado Democrático, Dominação Política e Cultural, Sujeitos e Valores Emergentes foram amplamente debatidos em quatorze grupos de estudos por meio de oficinas realizadas em diferentes centros universitários e entidades da sociedade civil. A abordagem dos quatro módulos dividiu-se em subgrupos temáticos, tendo cada qual um assessor, monitor e relator.

No módulo Desenvolvimento Econômico tiveram destaques os seguintes temas: Administrações municipais e populares, realizada na FEA/USP; Macroeconomia, PUC-SP; O Mercado e os excluídos (FGV). Em torno do módulo Estado Democrático, três diferentes subtemas foram debatidos: Reforma agrária (Ciências Sociais- PUC-Sp); Reforma urbana (Central dos movimentos urbanos), Do direito Alternativo (OAB/SP). Para o módulo Dominação política e cultural quatro grupos de trabalhos abordaram as seguintes temáticas: Democratização dos Meios de Comunicação (UCBC), Superação da violência (Núcleo de estudos da violência USP), Religião como dominação (Teologia PUC/SP), Projeto de educação popular (CEPIS). Outras quatro oficinas debateram o módulo Sujeitos e Valores Emergentes, sendo os subtemas: Contribuição da Doutrina Social da Igreja (Centro Pastoral São José), Sujeitos e valores emergentes nos movimentos sociais (Sociologia/USP), Os excluídos e a luta pela cidadania (Comissão Justiça e Paz), Meio Ambiente (CEDI).


Os plenários acenam as grandes descobertas:

Toda a manhã do dia 18 foi dedicada ao módulo Desenvolvimento econômico e a tarde, os participantes acompanharam as propostas vinda do módulo Estado Democrático. Manhã e tarde do dia seguinte foram, respectivamente, para os módulos Sujeitos e valores emergentes e Dominação política e cultural.


Modulo Desenvolvimento Econômico

Com assessoria prestada pelo do Prof. Luís Eduardo Wanderley, ex-reitor da PUC-SP e o trabalho de coordenação da Profa. Maria Soares de Camargo (PUC-Campinas), as três oficinas (Administrações municipais, Macroeconomia, Mercado e os excluídos), apresentaram as seguintes propostas:


1. Administrações municipais

As experiências de administrações municipais, realizadas, sobretudo a partir das eleições de 1988, revelam a existência de um espaço em que é possível avançar com relações inovadoras entre o poder público e as classes subalternas como com as classes abastadas. Eis as propostas elencadas nesta oficina:

  • A criação de um plano diretor para fixar as diretrizes de urbanização e a taxação progressiva dos terremos ociosos.

  • O fortalecimento da autonomia dos movimentos populares (todo cuidado com o perigo da cooptação), a formação e treinamento de lideranças e o desenvolvimento do conceito de cidadania.

  • A reorientação da administração pública através do primado da ética: pensar no coletivo e não no individual, porque o poder é uma representação dos eleitores.

  • Efetiva contribuição para a circulação de informações de interesse da população, por causa da inerente transparência do serviço público, e para que, no nível nacional, se eleja um Conselho de Comunicação e Informação, a funcionar ao lado do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, para realizar e manter a democratização dos meios de comunicação.


2. Macroeconomia

O novo Estado haverá de ser marcado pela descentralização do poder político, inclusive saindo da democracia representativa para a democracia participativa, da esfera central federal para as outras esferas, com destaque para a municipal; da concentração de renda para uma distribuição mais justa e de melhores resultados”, alertou os participantes da oficina sobre Macroeconomia e acenaram as seguintes propostas:

  • Resgate da pessoa humana como sujeito e fim da economia, a promoção da justa distribuição da renda e a da riqueza e o fortalecimento das organizações populares.

  • Educar para a formação do senso comunitário, tendo em vista a superação do individualismo.

  • Buscar novas estratégias para atingir a população não organizada,

  • Gerar projetos alternativos que responsam às necessidades locais, estaduais e nacionais.

  • Criar serviços de capacitação e apoio tecnológico.

  • Incentivar parcerias com as universidades.

  • Incentivar as atividades e instrumentos de informação.

3. O mercado e os excluídos

A opção pelo resgate da pessoa humana como sujeito e fim da economia exclui a sobrevivência de um velho Estado ou de um novo Estado prometido a partir da reforçada visão neoliberal, em que o mercado dita as regras para beneficio de pouco e exclusão das maiorias. Com base nesta ótica, as propostas sobre o tema O mercado e os excluídos foram as seguintes:

  • Tributação progressiva sobre as grandes propriedades rurais improdutivas, propriedades urbanas ociosas e sobre as grandes fortunas.

  • Democratização dos programas de irrigação, com prioridade para pequenos produtores.

  • Definição do papel da União, Estados e Municípios para democratização das relações produtivas, de modo que:

  1. Nenhuma criança fique fora da escola,

  2. Nenhuma família passe fome,

  3. Todos possam ter direito ao trabalho,

  4. Todos tenham acesso à terra e ao solo, no campo e na cidade.

  5. Viabilização concreta da reforma agrária – rural e urbana.

  6. Não penalização da população com o pagamento da dívida externa.

  7. Educação para todos e de boa qualidade.

  8. Penalização, com maior carga tributária, da especulação financeira e apoio simultâneo ao investimento produtivo.

  9. Execução de uma política de preços que garanta renda para o produtor rural.

Nos debates seguidos após a apresentação das propostas, o engenheiro agrônomo e pesquisador José Sidney Gonçalves (IEA), realçou a necessidade de realizar as seguintes reformas: reforma tributária, reforma agrária, reforma urbana, reforma da economia, reforma administrativa e uma reformulação das políticas agrícolas considerando o potencial de cada região do país. Salientou, ainda, que o acesso a serviços públicos na esfera da saúde e educação deve contar com a participação da sociedade na gestão e fiscalização dos recursos. Um programa de capacitação de mão-de-obra tende a diminuir as desigualdades regionais bem como atender às diferentes exigências dos processos produtivos.


Módulo: Estado democrático

Geraldo Aguiar (CRL) coordenou os trabalhos para pensar a qualidade do Estado Brasileiro que queremos. Foram realizadas três oficinas: Reforma Agrária, Reforma Urbana, Democratização do Judiciário e Poder Legislatiivo. Luiz Wanderley foi o assessor escolhido.


1. Reforma agrária

“O Brasil que queremos inclui a inevitável reforma agrária, não mais baseada na quantidade da terra, mas na produção da terra, livre dos atravessadores, fundada na solidariedade e na distribuição equitativa da renda”. Nesta ótica, foram estas as propostas aprovadas:

  • Uma adequada e efetiva política agrícola.

  • A fixação do homem do campo, no campo.

  • Apoio ao Movimento dos Sem-Terra, que é uma escola de cultivo dos laços do homem com a terra.

  • A consideração das diversas realidades: índios, posseiros e sem-terra.

  • A articulação entre as inúmeras denominações religiosas, do MST, dos movimentos populares, do povo em geral, das instituições políticas e sociais, dos trabalhadores do campo e da cidade, para a luta para a resistência, a conquista da terra e a permanência nela, para a transformação social e para se atingir a plena cidadania.

  • As forcas organizadas como: Comissão Pastoral da Terra, MST levantarão a bandeira da ética e apoiarão os microprojetos, prestarão assessorias e apoiarão as ocupações atuando junto aos trabalhadores e trabalhadoras.

2. Reforma Urbana

As propostas analisadas de descentralização dos projetos políticos e econômicos foram estudadas pelo viés da desprivatização dos projetos políticos, dando a eles um elemento essencialmente público.[3] Alcançar a distribuição mais justa das riquezas geradas pela cidade, com a redução das desigualdades sociais, contemplando o respeito à diversidade e aos valores culturais, é a maneira de efetivar o exercício dos direitos urbanos cujo processo corresponde ao resgate da cidadania.

Fruto da expectativa que se tem em relação à cidade, a reforma urbana é um projeto que se constrói dia a dia, dependendo do seu avanço, em grande parte, do aprofundamento e resolução das seguintes propostas:

  • Articulação dos movimentos sociais e dos setores organizados que atuam no espaço urbano no sentido da formulação de um projeto global de intervenção e de uma alternativa democrática-popular a um modelo segregador de produção e apropriação do espaço urbano.

  • Afirmação de um modelo de gestão democrática e transparente no trato da coisa pública e do espaço urbano, através de ação articulada da sociedade civil e dos seus representantes no parlamento e do uso de instrumentos de participação popular já existentes ou que venham a ser criados.

  • Reforço de pensar a problemática urbana a partir da integração com a problemática rural, observando a perspectiva da elaboração de um projeto político, social e econômico para o país. A reforma urbana e a reforma agrária se referem à mesma realidade de exclusão, sendo ambas instrumentos da construção da cidadania e do Estado democrático.

  • Afirmação do respeito à heterogeneidade social como um valor, como elemento fundamental da construção de uma cidade e de uma sociedade democrática.

  • Necessidade de a Igreja rever sua atuação no meio urbano, apropriando-se do discurso e da cultura urbana, adotando nova metodologia e prática pastoral, avançando para além de sua base organizada e atingindo as grandes massas.

  • Afirmação cada vez maior do caráter profético e propositivo da Igreja no Brasil. A denúncia social e o engajamento nos projetos e processos transformadores da realidade urbana excludente, assim como da realidade rural, devem aprofundar-se, num compromisso crescente [4].

3. Democratização do judiciário

O direito não deve ser compreendido como mera norma jurídica, como direito posto, mas sim como resultado de um processo de concretização da justiça. O processo de aplicação do direito supõe a interpretação da norma jurídica à luz dos valores democráticos. Daí se falar em direito alternativo, nas suas diversas concepções (informalização da justiça, pluralismo jurídico, abordagem crítica do direito, jusnaturalismo de combate, positivismo de combate). A sociedade deve conhecer, utilizar e aperfeiçoar os mecanismos jurídicos e processuais que a legislação lhe oferece (Constituição, ECA, Leis Ambientais, Código de Defesa do Consumidor, Lei de Execução Penal, Ação Civil Pública, Ação Popular e outras), para transformar o judiciário num lugar privilegiado de solução de conflitos individuais e coletivos. Além disso, a sociedade deve criar novos instrumentos legais de participação no Judiciário. Propostas: [5]

  • Instituição do controle externo dos órgãos que compõem o sistema de administração da justiça como forma de democratização desses órgãos, controle que deve ser feito pela sociedade.

4. O Poder Legislativo

No poder legislativo estão representadas todas as parcelas da sociedade, com suas maiorias e minorias, e essas partem podem elaborar, juntas, leis que atendam, na medida de capacidade de entendimento, a todos os interesses que existem na sociedade. Interesses minoritários contam com a representação da maioria dos parlamentares e vice-versa, daí resultante a causa do mal funcionamento dos parlamentares. Uma vez eleito através do processo distorcido, o legislador adota um comportamento distorcido. A preocupação central passa a ser a reeleição e, nesse jogo, não há regras senão um vale-tudo onde impera o clientelismo, fazendo com que as pessoas carentes dependam cada vez mais do legislador. Torna-se um despachante de luxo, atendendo casos individuais e emitindo as famosas cartinhas.

Para que o legislativo realmente cumpra suas funções na sociedade, teve realce as seguintes propostas:

  • Exigências de critérios rígidos para a criação de um partido.

  • Criação de fundos com recursos públicos, controlados pela sociedade, para financiamentos das campanhas eleitorais.

  • Fim de votações secretas no parlamento.

  • Limitação da imunidade parlamentar.

  • Instituição de um Código de Ética, com provisão de sanções para a corrupção e para o desrespeito do interesse público, e de uma Comissão de Ética, externa ao Legislativo, para aplicar o Código.

  • Formação de mesas de negociação pública, com a participação de lideranças sociais, técnicas e representantes dos interesses afins, para tramitação dos projetos de lei.

Ao parlamentar cabe assumir uma nova postura. Ele tem papel fundamental na educação política do povo e também como canal de participação social na discussão das leis que interessam a toda sociedade. Mas, insiste-se: as mudanças só ocorrerão a partir dos eleitores, doa quais se formam bons políticos e cidadãos que conhecem seus direitos e que se sentem responsáveis palas decisões e mudanças que o país precisa. [6]

O professor Luís Eduardo Wanderley, na qualidade de assessor do módulo Estado democrático”, fez as seguintes ressalvas: “O Estado é público mas foi privatizado. Como o Estado é público, é de todos, logo tem que ser transparente, tem de ser fiscalizado e tem de ser controlado pela população. Há vários instrumentos para isto, inclusive o referendo e o plebiscito, previstos na ordem constitucional.

Para que tenhamos um Estado democrático, é preciso saber quem são os sujeitos construtores deste Estado. São aqueles que lutam pelo humano, a justiça social, a liberdade, o conjunto das forcas progressistas e democráticas.

Os sujeitos emergentes, os sujeitos populares apresentam uma face democrática e uma face não democrática. Nem sempre há coerência entre o que se propõe de democracia e a prática cotidiana nos partidos populares, nos movimentos populares, nos sindicatos, nas comunidades eclesiais.

Para fazer avançar a democratização na sociedade e no Estado, é preciso somar todas as forcas e esforços entre os que acreditam e lutam por ela. Fazer alianças, aceitar o pluralismo, faz parte do jogo democrático. Envolver principalmente setores das classes medias (técnicos, profissionais, professores, intelectuais etc.) por sua influência na sociedade. Na Igreja está se estruturando uma Pastoral de Classes Médias diferente, a serviço da nova sociedade e de apoio aos setores populares.

Chamo a atenção para outros pontos de reflexão. Superar o “achismo”, com estudos e pesquisas que forneçam elementos para diagnosticar, conhecer, interpretar a realidade social, e agir melhor nos processos de mudança.

Sabemos que a Igreja Católica (as igrejas) sabe trabalhar bem com minorias organizadas, pequenos grupos, e tem dificuldades para chegar às massas. Sem pretensões proselitistas, é necessária uma Pastoral das Massas, na linha da opção pelos pobres e aberta para a criatividade. A comunicação social (rádio, televisão, imprensa etc) é importantíssima, sem cair nos erros da “Igreja eletrônica”.

Por último, lembro que a Igreja que aparece na opinião pública é a dos bispos (na declaração dos pontos polêmicos). É fundamental dar voz e vez aos leigos, com autonomia e participação nas decisões. É fundamental valorizar efetivamente a presença das mulheres nas organizações eclesiásticas e nas demais atividades.

Módulo: Sujeitos e valores emergentes

A I Semana Social não vem pronta. Nós somos os seus protagonistas e a produzimos momento a momento, com toda a riqueza possível, como acabamos de ver na apresentação do tema sobre Estado Democrático. A preocupação foi de Alex Zittei, coordenador da plenária para os trabalhos do módulo “Sujeitos e valores emergentes”. A assessoria foi prestada pelo padre Mauro Baptista. Quatro grupos de trabalhos foram formados para refletirem os seguintes temas: Contribuição da doutrina social da Igreja, Sujeitos e valores emergentes nos movimentos sociais, Os excluídos e a luta pela cidadania e Meio ambiente.


1. Contribuição da doutrina social da Igreja

A doutrina social da Igreja (DSI) constituiu um conjunto de princípios orientadores de uma ética – católica e crista, mas transcultural – capaz de nortear atitudes, comportamentos e moral humana, na perspectiva da transformação e de construção de uma sociedade mais justa e digna. Está norteada por seis importantes princípios: 1) A dignidade inalienável da pessoa humana; 2) A primazia do bem comum sobre os interesses privados; 3) A destinação universal para todos os bens criados; 4) A primazia do trabalho sobre o capital; 5) O princípio da subsidiariedade que prevê a descentralização em todos os níveis da sociedade; 6) O princípio da solidariedade através da qual cada um se constrói na solidariedade com o outro.

A discussão da influência e aplicabilidade dos princípios da DSI passa, inicialmente, pela constatação de seu pouco conhecimento dentro da própria Igreja. Embora de um modo ou de outro ainda aplique os princípios da DSI, seu conhecimento segue sendo restrito ao clero. Falar em DSI ainda soa como algo estritamente voltado para a vida interior da Igreja. Por tais motivos, a oficina pautou as seguintes propostas ao plenário [7]:

  • Que o conhecimento da DSI seja acessível a todos os agentes pastorais, para sua divulgação e popularidade.

  • · Que essa formação seja consciente e concreta, que atinja todos os padres e atenda às urgências do leigo inserido nas estruturas sociais, politicas e econômicas.

  • · Que o ensinamento da DSI comece, de acordo com a pedagogia necessária, desde a própria catequese das crianças, fazendo com que os princípios sejam assimilados desde cedo.

  • · É importante que estes princípios estejam sendo vividos dentro da própria instituição Igreja, para que haja credibilidade.

  • · É necessário que a Igreja promova o encontro das forças que pesam na construção da sociedade, para diálogos à luz da DSI.

2. Sujeitos e valores emergentes nos movimentos sociais

A emergência das Comunidades Eclesiais de Base, o surgimento do sindicalismo de base em substituição a um sindicalismo tradicional, as correntes do movimento constituinte de 1988, as vitórias inscritas no texto constitucional formam um conjunto de forças que ora demonstram retração ora demonstram reforço e avanço.

Reforma agrária, reforma urbana, democratização dos meios de comunicação, centrais de movimentos populares, direitos alternativos, ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e seus conselhos tutelares, partidos políticos ligados ao bloco de esquerda, movimentos pela cidadania, contra fome, miséria e pela vida certificam as forças políticas atuando na sociedade. Os sujeitos e valores emergentes consubstanciam um grande movimento nacional de fé e luta que reforça a esperança de uma sociedade democrática construída pela consciência ética e pelo caráter profético de uma subjetividade digna, a indicar a valorização da cidadania e uma legítima e adequada atenção ao social.

As propostas para o tema dos valores e sujeitos emergentes nos movimentos sociais dizem respeito a muitos sujeitos e valores em múltiplos campos de atuação, mas uma atenção especial é merecida pelas crianças e adolescentes, onde é necessário [8]:

  • Pronunciamento oficial e efetivo da Igreja a respeito do ECA

  • · A mais ampla divulgação do ECA e dos Conselhos Tutelares pelos membros da Igreja e de todas as suas comunidades.

  • · Onde não houver Conselho Tutelar, propostas e pressões, para a sua mais urgente implantação, devem ser realizadas.

  • · Programas de ação visando à fiscalização e ao controle da execução do orçamento público, em cada comunidade.

  • · Criação de cooperativas de trabalhadores.

  • · Realização de programas para implementação ou melhoria das relações cidade-campo.

3. Os excluídos e a luta pela cidadania

Está lançado o apelo para uma conversão mais profunda e para que se acredite no Evangelho vivo da misericórdia. Ouvir é mais importante do que falar e o coração mais do que o pensar. A luta pela cidadania não pode ser outra senão a que se faz dentro da ótica do excluído.

Excluídos são os miseráveis, empobrecidos que estão abaixo da linha da pobreza. Os discriminados por questões étnicas, negros e índios, são os submetidos. Excluídos: os fracos, a mulher, os carentes, os doentes físicos e mentais. Os sem instrução formal, analfabetos e semi-analfabetos. Os excluídos por ordem sociológica, antropológica e psicológica. Os dissidentes de toda espécie. O grupo apresentou suas perguntas e propostas[9]:

  • O que a Igreja faz com seus recursos humanos? Seus espaços físicos? Seus recursos financeiros? Tem uma estrutura de trabalho que faz com que os excluídos se encaixem nela ou, ao contrário, não são aceitos imperando o “Ponha-se no teu lugar”?

  • Como fazer para evitar que o cajado do pastor não seja usado para bater nas ovelhas, mas só para espantar os lobos?

  • Retomar seriamente Puebla, a opção pelos pobres, o evangelho: Ressuscitar os valores da partilha, da solidariedade, da libertação, da presença, cultivando o amor.

  • Queremos teólogos e exegetas relendo o evangelho a partir dos excluídos: o pobre, o doente, o pecador na perspectiva de Jesus.

  • Acreditamos muito nos canais organizados, sindicatos e movimentos. Hoje, vamos acreditar nos marginalizados e caminhar com eles, com os catadores de lixo reciclável, com o trabalho cooperativado, os sem-terra, os sem-teto.

  • Propomos que haja critérios claros com relação à imunidade parlamentar.

  • Propomos um combate com seriedade e firmeza contra o capitalismo: somos todos excluídos e precisamos forcar uma instancia para controlar os organismos financeiros internacionais que controlam os países.

  • Queremos o compromisso com os excluídos do campo e os excluídos da cidade, o compromisso da união entre a cidade e campo, a luta pela reforma agrária e agrícola e também a luta pela reforma urbana. Já.


1. Meio ambiente

O aumento da poluição, a depredação do meio ambiente e o crescimento da miséria, principal fator de poluição do mundo, mostram que a questão ambiental não é prerrogativa de nenhuma categoria social, embora os países do Primeiro Mundo responsam por 25% da população mundial e consumam 80% dos bens produzidos.

“Os mais sérios problemas globais de desenvolvimento e o meio ambiente que o mundo enfrenta decorrem de uma ordem econômica mundial, caracterizada pela produção e consumo sempre crescentes, o que esgota e contamina nossos recursos naturais, além de criar e perpetuar desigualdades gritantes entre as nações, bem como dentro delas” (Tratado sobre Consumo e Estilo de Vida, Eco-92).

A experiência da Cáritas Brasileira, Regional São Paulo, com o projeto “Luxo do Lixo – Esperança de Vida Nova” favorece maior conscientização ecológica e ambiental em que a preocupação maior é a pessoa. O projeto visa a promoção de catadores de papelão , com a possibilidade de oferecer empregos e obter retorno financeiro para uma economia partilhada a ser desenvolvida em projetos sociais favorecendo a solidariedade, promovendo o humanismo cristão e um caminho de transformação. O passo seguinte é a consciência política, dentro de uma lógica de vida diferente, que amplia o conceito de cidadania e o espírito cooperativista, além de um novo conceito de poder.

A oficina brindou expor na plenária as seguintes indicações [10]:

  • É possível pensar num projeto de ecocapitalismo?

  • É possível pensar num projeto de ecossocialismo?

  • Em que medida o pensamento ecológico repensa a questão da dominação e das relações de produção?

  • Como avançar para recuperar a unidade na diversidade, uma vez que “em nossa inteira diversidade somo unidade?” (Carta da Terra, Eco-92).

  • Como fazer dos problemas ecológicos uma questão socioambiental?

As considerações do assessor do módulo “Sujeitos e valores emergentes”, padre Mauro Batista [11] marcaram o encerramento das apresentações e debates, realçando os seguintes aspectos:

A história brasileira tem sido uma historia de exclusão. De 1500 a 1888 tivemos a marca da escravidão, pois os escravos eram a maior parte da população. Do escravo se usava e se abusava. Isso foi durante 400 anos e passou a fazer parte da mentalidade brasileira, a mentalidade de desfrutar, de aproveitar, levar vantagem. A igreja estava do lado dos exploradores. Esta visão de exclusividade permanece. Excluem-se, ainda hoje, grandes contingentes da população.

De 1888 até a década de 30, tivemos a República do “Café com Leite” (São Paulo e Minas Gerais). Os grandes proprietários mandavam e desmandavam. Os eleitores, mesmo em pequeníssimo número relativamente a toda população, eram eleitores de cabresto. E, assim, foi até 1945.

De 1945, fim do governo Getúlio Vargas e da Segunda Guerra Mundial, até 1964, tivemos um dos poucos momentos em que a população podia falar, falar de maneira logicamente confusa, uma espécie de linguagem da infância, tanto na fala dos sindicalistas pelegos quanto na dos defensores de reformas de base. Os poderosos viam nisso uma “bagunça”.

Em 1964 veio a ditadura, e falar se tornou novamente perigoso. “Eu não acho nada, meu irmão achou e agora não acho ele” - frase comum de ser ouvida por parentes das vitimas do regime. Então foram quase quinhentos anos de privilégios para alguns, exclusão para as maiorias e mordaça para quase todos.

Esta “cultura” está dentro da mentalidade das classes dominantes e também na mentalidade de grande parte dos dominados. Somente há pouco tempo surgem grupos que pensam uma reforma a partir das bases, querendo rasgar esta mordaça para que o povo possa participar da resolução dos problemas que angustiam toda a população.

Ter, poder, saber

De um certo modo os seres humanos podem ser considerados por essas três dimensões: ter, poder, saber. Se o ser humano não tem, não pode e se não sabe, ele é um não ser. Num determinado sentido, o leigo, dentro da Igreja, tem tido características semelhantes, com as condições de não ter, não poder, não saber. De tal modo que as pessoas se acostumaram a se excluir; quando não tinham, não podiam e não sabiam se envolver, diziam “Sou leigo no assunto”. E do leigo até se disse que vive “sentado para ouvir, ajoelhado para rezar, com a mão na carteira para pagar”.

Essa reflexão é para não continuarmos reproduzindo em termos de história civil ou história eclesial, a “cultura da exclusão”. No Brasil de hoje estamos falando muito positivamente da moral e da ética, talvez premidos por tantos conflitos morais ao longo da história, de nossa história e no tempo presente. A parábola do bom samaritano serve para ilustrar o momento que passamos, com tantas multidões à beira da estrada. Aquele que se encontra na beira da estrada nada tem, nada pode e nada sabe. Diante dele, o que passa pode ter três atitudes. A primeira é a dos ladroes e assaltantes; a segunda, a do sacerdote levita; a terceira, a do bom samaritano.

A moral do ladrão e do assaltante é a seguinte: “O que é meu, é só meu. O que é seu, deve ser meu, e se você não me der, eu o mato”. Não precisamos ir longe para ver, no Brasil de hoje, essa moral de assaltante, que tolhe, mata e rouba.

Já a moral do sacerdote levita, em relação ao homem que estava quase morto, à beira da estrada, é a seguinte: “O que é meu, é meu. O que é seu, é seu. Estou numa boa. Você está na pior, dane-se”. Quer dizer como tantos, o levita não quer se envolver com pessoas necessitadas, preguiçosas, aidéticas e outras. Ele procura desculpas e as acha; uma posição moral possível de ser encontrada em trabalhos pastorais.

Enfim, a terceira atitude revela mais que uma moral, revela uma ética: “O que é meu, é realmente meu quando pode se tonar nosso”. O bom samaritano se aproxima do homem que estava sem consciência e faz com que adquira consciência por seu contato com ele. Partilha com o outro o que tem, lhe dá condições de poder. Com seu gesto, faz o outro ter (aspecto econômico), faz o outro poder (aspecto político) e faz o outro saber (aspecto cultural), tornando possível ao outro assumir a consciência de sua dignidade.

A parábola nos dá a ocasião de perguntar se a conduta mais recorrente não é a do sacerdote levita, uma atitude de indiferença, e se a religião não pode se tornar muitas vezes, um veneno, que precisamos corrigir para estarmos em permanente conversão que nos permita continuar juntos e superar essa exclusão de tantos e tantos.

Saber e fazer

Nós, que participamos de tantas assembleias e reuniões, com a cabeça e o coração cheios de grandes propósitos, podemos recorrer agora a uma anedota para encerrar esta reflexão.

“Num determinado país, durante uma ditadura, as crianças do catecismo foram à Casa de Detenção tentar libertar os presos. A polícia da ditadura veio as prendeu. E pensou: deve ter alguém por trás disso.

- Quem mandou vocês aqui?

- Foi a catequista.

Durante a acareação, as crianças asseguraram:

- Ela nos falou de misericórdia, ajuda aos pobres, libertação dos presos e outras coisas.

Na outra semana, já na sala do Centro Comunitário.

- Vocês não entenderam, disse a catequista. O que eu falei é para vocês saberem, não para vocês fazerem.

Pois bem, nas assembleias e reuniões debatemos tantos modelos, falamos tanto em pensar e em consciência, em ética. Mas a ética, que é uma atitude básica que instrui o ter, o poder e o saber, somente é mesmo uma ética, como na carta aos efésios, que fala da maturidade em Cristo, quando leva em consideração, através do fazer, a grande maioria excluída.

Misericórdia vem de “miseris cor dare”, isto é, dar o coração ao miserável. Dar o coração não é olhar de cima, nem fazer para. É fazer com”.


Módulo: Dominação política e cultural.

A coordenação dos trabalhos ficou a cargo de Carmem Cecília de Souza Amaral. O professor Ismar de Oliveira Soares prestou assessoria. As sínteses apresentadas provem de quatro oficinas que debaterem os temas: 1) Democratização dos meios de comunicação; 2) Superação da violência; 3) Religião como forma de dominação; 4) Projeto de educação popular.


1. Democratização dos meios de comunicação

Os receptores são parte integrante do processo de comunicação. Tem direito a que se respeite sua subjetividade e a que se valorize suas informações e opiniões. A população, que é quem tem energia e saber para resolver os problemas do país, necessita da democratização dos meios de comunicação para realizar o seu trabalho de construção do desenvolvimento e da democracia, o que não será possível sem a autoexpressão da sociedade.

A conquista de democracia na comunicação inclui, dentre outras medidas, o incremento do processo de ações pedagógicas, sistemáticas, voltadas para a formulação do senso crítico e para a capacitação no uso dos recursos da comunicação, em função dos interesses das comunidades.

No quadro das propostas, realçam os seguintes desafios [12]:

  • Mudanças na legislação: através de um conjunto de regras mínimas, os poderes constituídos da República deverão ser quatro: o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e o da Comunicação. Quanto ao funcionamento dos meios de comunicação, sobretudo o rádio e a televisão, que são serviços públicos, a sociedade como um todo deve se ado processo da comunicação social, que lhe pertence.

  • Uma televisão pública: a criação imediata de uma Televisão Pública Nacional para que a população e o povo promovam debates e informação sobre os grandes problemas nacionais, desenvolvendo a capacidade de compreensão de sua realidade, a consciência crítica e o entendimento necessário à solução das questões de interesse comum.

  • Regulamentação da Constituição de 88: a instalação imediata do Conselho de Comunicação Social, criado pela Constituição de 88 e instituído por lei de 91, como órgão auxiliar do Congresso Nacional para estudos e discussão dos problemas de comunicação social no país.

  • Educação para a comunicação: a) incentivo a ações pedagógicas, em todos os níveis de escolaridade, que habilitem os alunos à leitura crítica dos meios de comunicação; b) estímulos para a criação de novos grupos ou comitês para a discussão das questões da comunicação social pela comunidade; c) criação de comitês de fiscalização da mídia no processo eleitoral; d) aprofundar nas paroquias e comunidades os documentos da Igreja sobre a comunicação social.

  • Verbas da publicidade oficial: as verbas oficiais para a publicidade governamental, em todos os níveis, devem ser distribuídas a todos os meios de comunicação social, segundo sua audiência ou leitura, e sem discriminação, observando-se apenas a segmentação do público a que se dirigem.

  • Os meios de comunicação da Igreja: as entidades mantenedoras dos meios de comunicação social da Igreja (rádios, jornais e revistas) devem fazer com que esses maios sejam mais incisivos na formação da consciência democrática e no empenho pela transformação da realidade sociopolítica e econômica.

  • A questão tecnológica: o poder público franqueará o acesso aos serviços básicos de telecomunicações, para os movimentos populares e sociais desprovidos de recursos financeiros, sem que este acesso e utilização possa encarecer custos maiores do que os subsídios concedidos aos meios de comunicação privados.

2. Superação da violência

O aumento progressivo da violência demonstra a falência do modelo de Estado vigente quando, sendo a segurança de cada um e de todos uma função do Estado. É o próprio Estado um militante da violência, através dos seus agentes, fardados ou não. Diretamente articulada com a questão da ordem econômica, política e social no país, que impõe a desigualdade na distribuição de renda, a violência se agravou com a ausência de democracia em 25 anos de ditadura e se intensificou nos anos 80 por causa do “pacote de abril” de 1977. A partir de então as PM`s militarizadas passaram a ter seus crimes julgados pela Justiça Militar das próprias PM`s, oferecendo-se uma larga margem para a impunidade, sem que a Constituição de 88 tivesse secado a fonte do arbítrio policial.

Eis as propostas apresentadas ao plenário [13]:

  • Uma articulação ampla, forte e eficaz para a aprovação, sem emendas do projeto estabelecendo a transferência, para a justiça comum, dos crimes cometidos pala policia.

  • Controle dos orçamentos públicos pela população, para que sejam elaborados e aplicados corretamente, inclusive no que diz respeito à garantia de segurança para o cidadão.

  • Criação de um programa de proteção às testemunhas.

  • A articulação, pelo conjunto das entidades, de um processo de conscientização da comunidade em relação aos direitos humanos.

  • Cobrança de maior atenção, por parte do Estado, para a educação, inclusive com um ensino alternativo para as crianças e adolescentes de rua, possibilitando conscientização e conquista da cidadania.

  • Modificações na legislação para que os crimes contra os direitos humanos sejam julgados pela Justiça Federal e pelo Ministério Público Federal.

  • A realização de investimentos no aparelho policial, propiciando melhor preparação, atualização e remuneração.

3. Religião como forma de dominação

O tema “Religião como dominação cultural” traz um amplo aspecto da análise que deriva do entendimento do que é a cultura da dominação e do que é a própria religião. O homem elabora um conjunto de saberes para garantir a sua sobrevivência, tendo como fundamento a linguagem dos códigos na sua relação com a natureza, linguagem que é também a expressão daquilo que o homem é – individual e coletivo.

As várias tendências filosóficas tratam do questionamento da legitimidade das religiões fomentando a perspectiva do que é ter uma consciência religiosa, do que se entende por Deus. Deus é uma experiência concreta? Deus é uma imaginação de fonte cultural? Deus é uma experiência individual ou coletiva?

Há também três aspectos fundamentais que devem ser analisados sob a ótica da composição de qualquer religião: o milagre, o mistério, a autoridade. Em certa medida esses aspectos são colocados muitas vezes de forma a excluir um em detrimento dos outros.

As propostas legitimadas pela oficina indicaram [14]:

  • Questionamento da religião enquanto instrumento de dominação, inclusive o poder da religião católica, entendida a religião como expressão cultural e serviço.

  • Buscar os elementos de dominação cultural nas comunidades, analisando os sinais dessa manifestação.

  • Questionar o exercício de poder dos que dominam as religiões, em particular a Igreja católica.

  • Refletir sobre a Igreja que cada um quer e o modelo de Igreja proposta por Jesus.

  • Refletir sobre o papel da Igreja: dar espiritualidade? Resolver problemas emergenciais? Manter a tradição? Transpor as barreiras da instituição?

  • Questionar as intenções do ecumenismo, identificando os aspectos de dominação cultural.

  • Refletir sobre religião, religiosidade e ateísmo.

4. Projeto de educação popular

Entendemos a educação popular, não se limitando a questões formais, mas consistindo em uma prática que deve ser exercida em todos os momentos e em todos os lugares, se apresenta como o meio de transformação social para atingir os valores da fraternidade, da igualdade e da justiça, rumo a um socialismo inovador. Através da educação popular será possível superar a atual cultura de dominação, causada principalmente pela sociedade de classes, que faz germinar a falta de ética nas relações econômicas, políticas, religiosas e de comunicação.

No embate com a cultura de dominação, a educação popular reforça, permanentemente, na prática e nas conexões cotidianas, o novo referencial de respeito à subjetividade, como também de fraternidade e de cooperação, motivando ao sentido do coletivo e à participação popular. Para alcançar os objetivos, a educação popular não descuidará do problema da internalização do medo dos próprios marginalizados e excluídos (leigos, crianças, negros, índios ...). Internalização que é um grande fator de manutenção e reprodução das relações de dominação, atuando nos ambientes domestico, de trabalho, nas igrejas e na vida pessoal e social.

No desejo de alcançar os objetivos foram indicadas as seguintes propostas [15]:

  • A educação popular preparará a sociedade para o socialismo, despertando as pessoas para a necessidade de mudanças, superando o paternalismo e o clientelismo, respeitando a individualidade e realizando a transformação política.

  • Articulação entre as varias pastorais e entre os movimentos populares da cidade e do campo.

  • Favorecer o conhecimento de como funciona a sociedade, bem como a presença e articulação das classes sociais que atuam na defesa de seus interesses.

  • Questionamento da exclusão dos leigos pelos padres conservadores sem prática de trabalho social.

  • Questionamento do clero na indicação de padres para as paróquias, sem considerar a história de cada região.

  • Articulação do campo e da cidade para a conquista da reforma agraria e da reforma urbana.

  • Buscar novas formas de organização diante da cultura individualista da dominação.

  • Trabalhar os momentos eleitorais para alcançar esta nova sociedade.

  • Antes das palavras conclusivas do assessor professor Ismar de Oliveira Soares, um debate entre os participantes ocorreu. Recordamos as seguintes inquietações:

  • A utilização da mídia pelas religiões, em especial a televisão, tem relação com a produção de bens simbólicos, em torno dos quais, aliás, giram os nossos debates. As justificativas da violência crua, por exemplo, são violência simbólica.

  • Uma catequese deve romper com a memorização. A memorização tem a ver com o que Paulo Freire chamou de educação bancária: ensina-se a memorizar para depois cobrar. A catequese deve dar ao ser humano o caminho da libertação, da espiritualidade que vai acompanha-lo por toda a vida.

  • Para conseguir a libertação é necessário saber onde está a chave da dominação. Precisamos saber o que é o sagrado, o que é espiritualidade e qual a razão da fé. Em que acreditamos?

  • A mídia trabalha contra a organização da população, contra o desenvolvimento e contra o que chamamos de valores. Os valores da mídia não coincidem com os da família, da escola, da sociedade, das religiões e da política. A realidade é uma, p que sai na mídia é outra coisa, hora a hora, dia a dia, ano após ano. O país, ao invés de usar a televisão em benefício de todos, é usado e abusado pela televisão.

  • A I Semana Social é dedicada ao tema geral da ética e da subjetividade. Sendo a comunicação o processo dialético entre o indivíduo e o social, entre o privado e o público, entre o subjetivo e o ético. Como conseguir a subjetividade no lugar da massificação mentirosa, e a ética, ao invés da barbárie infame, sem submeter a comunicação pública ao império da lei?

Um dos líderes do movimento pela democratização na comunicação, o professor Ismar de Oliveira Soares (ECA-USP), encerrou algumas considerações:

A cultura e a política são, por definição, domínios insuscetíveis de controle, donde resulta a abominação da censura, mas é forçoso reconhecer os aspectos concretos de uma dominação cultural e política. Essa dominação se realiza tanto através de leis limitadas e ilimitantes quanto de instrumentos propriamente culturais, utilizando-se de umas e outros, grupos privilegiados que ora manipulam o parlamento, ora instrumentalizam os meios de comunicação e os demais meios de acesso à cultura.

Os trabalhos e propostas das oficinas deste módulo sobre a dominação cultural e política revelam, no entanto, uma certa percepção, que parece universal, cada vez mais clara e mais geral, dos fenômenos e processos da dominação, tornando-a inaceitável. A insurgência ética que se verifica na sociedade em geral resulta da indignação diante de fatos como aumento da violência contra os excluídos, indicando aspectos de falência do Estado vigente e a consequente necessidade de construção de uma nova sociedade, e aponta para a construção de um efetivo Estado de direito.

Para isso, foi indicada a necessidade de democratização urgente dos meios de comunicação, com várias propostas sobretudo para a televisão, cuja centralidade no processo da dominação cultural e política é notável, e também para a realização do projeto de educação popular.

De fato, a cultura da dominação não poderá ser superada em seus aspectos mais negativos – a germinação do individualismo e da falta de ética nas relações sociais, que geram a violência e a exclusão – senão por uma outra cultura, aqui chamada de educação popular, forte o suficiente para implementar os valores da fraternidade e da justiça.

A última sessão da I Semana Social foi uma oportunidade de ouvir e aprovar quatro moções expostas ao. A primeira, Moção pela vida, se opõe a troca de armamentos por alimentos envolvendo os governos da Rússia e do Brasil. Nosso país enviaria alimentos e em troca receberia armamentos, literalmente “encalhados após o fim da guerra fria”. Entre outras denuncias, afirmava a nota: “Toda a sociedade civil se organiza e se mobiliza em busca de resgate da cidadania e no combate contra a miséria e a fome; 32 milhões de brasileiros foram submetidos à fome, ao subemprego, à falta de educação, por conta de posturas políticas que privilegiam apenas uma pequena parcela da população”. A moção de repúdio ao governo do Estado de São Paulo, à Companhia Energética do Estado e ao Grupo Votorantim pela “Construção irracional de barragens” no Rio Ribeira de Iguape, em Ivaporunduva, Barra do Batatal, Funil, Itaoca e Tijuco Alto. Uma terceira apela pela falta do governo estadual em apresentar um projeto e sustentabilidade e proteção aos “Mananciais e ecossistemas existentes na região do Alto Tietê”. Uma quarta acenou positivamente para a criação da “CPI do Orçamento” cumpra sua missão de apurar, até as últimas consequências, todos os fatos, todos os crimes e todos os envolvidos.

A I Semana Social terminou com a leitura da “Carta ao Povo de São Paulo”, tendo como título “Não tenham medo”, lida pela atriz Carla Helena, representando Betinho e a Campanha pela Cidadania, contra a Fome e Miséria e pela Vida. Segue alguns trechos a carta [16]:

  • De muitos lugares do Estado de São Paulo, viemos para a I Semana Social do Regional Sul I da CNBB, trazendo na bagagem as conclusões de outras Semanas Sociais. Aqui chegados, trabalhamos, cantamos, dançamos nos encontramos...

  • Através de palestras, debates, apresentações culturais, oficinas de reflexão, fomos desvendando o retrato vivo de uma enorme multidão de excluídos, muitos dos quais presentes entre nós, milhões de pessoas “cansadas e abatidas” como “ovelhas sem pastor” (Mt 9,36)...

  • Identificamos seus rostos. Parecem velhos antes de completar 30 anos, cansados antes do amanhecer, adultos antes de terem sido crianças, desempregados antes de conhecerem o trabalho, mortos antes de terem vividos, indesejáveis e descartáveis antes de terem nascidos. Habitam cortiços, favelas, ruas, viadutos e pontes; periferias, terrenos clandestinos, prisões e alojamentos; alagados, morros, beira de rios e pontas de ruas...

  • Identificamos um povo protagonista de novas alternativas. “Povo perseguido, mas não abandonado; prostrado por terra, mas não aniquilado” (2 Cor 4,9). Povo tenaz na esperança, destemido na luta, firme na resistência, perseverante na organização, cuja travessia rima com teimosia, forjando um amanhã que já se faz criança...

  • Finalizamos renovando nossa fé e nossa esperança no “novo céu e nova terra” (Ap 21,1), porque acreditamos nos pequenos, nos fracos e nos excluídos, acreditamos numa solidariedade que a ninguém deixa do lado de fora e acreditamos na força da organização da imensa maioria.


[1] Cf. CNBB – Regional Sul I, O Brasil que queremos: alternativas e protagonistas. Petrópolis, Vozes, 1994. O artigo é uma síntese dos principais temas expostos por assessores e participantes desta Semana que, ao nosso olhar, não somente pensou o Brasil, como acenou os possíveis caminhos. Em nossa síntese optamos por manter os argumentos e propostas tais como foram registradas e apresentadas ao grande público quando da sua publicação.


[2] Idem, p. 26.


[3] Padre Sávio Carlos Desan Scopinho, foi o relator dos trabalhos.


[4] Maria Tereza Araújo Silveira Mello, foi a relatora.


[5] Marcelo Goulart, redator.


[6] William R. S. Vasconcelos, foi e relator.


[7] Regina de Fátima M. Souza fez a relatoria.


[2] Armando de Souza Amaral foi o relator da oficina.


[9] Antonio Salvador Coelho foi o relator da oficina.


[10] Maria Muniz foi a relatora.


[11] O padre e doutor Mauro Batista, faleceu no dia 25 de janeiro de 1995. Natural de Barra Mansa, estado do Rio de Janeiro, nasceu em 17 de janeiro de 1934. Mauro Batista foi pioneiro no estudo da negritude no Brasil e sua relação com a teologia cristã. Em sua tese doutoral na Universidade Gregoriana argumentou sobre “Um olhar na realidade da população afro na diáspora africana”. Por 32 anos foi pároco na Igreja Nossa Senhora de Fátima, Vila das Belezas.


[12] Cláudio B. Pradela fez a relatoria.


[13] Terezinha de Jesus M. Souza fez a relatoria.


[14] Atanásio Myttonios foi o relator.


[15] Djalma Querino de Carvalho fez a relatoria.


[16] A formulação e redação da Carta esteve aos cuidados do padre Alfredo José Goncalves (Serviço Pastoral dos Migrantes).

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Antonio Carlos Frizzo é Padre na diocese de Guarulhos e professor em Teologia Bíblica. Possui mestrado pelo Instituto Católico de Paris e doutorado pela PUC-RJ. Entre os anos de 1992 a 1996 atuou como secretário Regional da CNBB – Sul I.

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Professor Padre Antonio Carlos Frizzo

Possuo doutorado em Teologia Bíblica pela PUC-Rio (2009). Sou professor no Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP- SP) e assessoro cursos no Centro Bíblico Verbo, SP.

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