Introdução:
Davi, personagem mítico (bom, belo, justo e honesto [F1] ). É rei de Israel. No uso de sua inteligência consegue por fim ao gigante Golias. Homem dos salmos. Cantado em rodas nos encontros religiosos. Mas a imagem mítica não resiste diante de uma leitura crítica e comparada dos textos.
“Após uma série de intrigas entre Abner e Joab, chefe do exército de Davi, Abner acaba sendo morto por este, deixando Davi completamente inocente da questão (II Sm 3,22-39). Restava, porém, um empecilho: Isbaal, filho de Saul, continuava vivo e poderia reivindicar o trono e governar as tribos do Norte. O problema foi logo resolvido, pois Recab e Baana, soldados de Isbaal, o mataram e levaram sua cabeça a Davi (II Sm 4,1-12). Com isso, ficava livre o caminho para Davi reinar sobre as tribos do Norte, unificando-as numa só nação (IISm 3,1-15)”. (Storniolo, Ivo & Balancin, E.M. Como ler Samuel, p. 28)
Uma leitura atenta, logo irá descobrir que não havia muita diferença em ser rei em Israel ou em outra parte do mundo. A violência é parte inerente de todo o processo de conquista.
Os reis são considerados os donos da terra (1Rs 21), detinham direitos sobre pessoas e posses; cobravam impostos, submetiam pessoas aos trabalhos forçados/corveias (cf. II Sm 7,11-17). Todas as abominações fizeram Davi e Salomão, antes e depois da divisão dos reinos.
Nossa reflexão considera o crime de Davi e a reação do movimento profético, representado na pessoa de Natã. Os leitores podem vislumbrar a força teológica da parábola contida em 2Sm 12,1-4. Vejamos, mais de perto, o texto:
Texto:
1. O SENHOR enviou Natã a Davi. Chegando Natã a Davi, disse-lhe: Havia numa cidade dois homens, um rico e outro pobre.
2. Tinha o rico ovelhas e gado em grande número;
3. mas o pobre não tinha coisa nenhuma, senão uma cordeirinha que comprara e criara, e que em sua casa crescera, junto com seus filhos; comia do seu bocado e do seu copo bebia; dormia nos seus braços, e a tinha como filha.
4. Vindo um viajante ao homem rico, não quis este tomar das suas ovelhas e do gado para dar de comer ao viajante que viera a ele; mas tomou a cordeirinha do homem pobre e a preparou para o homem que lhe havia chegado.
Um crime, uma denúncia:
A atitude de Davi é descrita, com minúcias, no capítulo 11:
Palácio, guarda pessoal, paixão, poder e morte.
Urias, servo fiel e traído por ordens de Davi.
O texto não esconde o cinismo de Davi ao receber o relatório da derrota imposta aos soldados de Joab (v. 22).
Pressionado pelos boatos, o rei resolve assumir publicamente que tem uma nova esposa. O que não passava de uma mera intriga palaciana torna-se um fato público. Queira ou não o rei fez um delito: “Não matarás. Não cometerás adultério. Não cobiçarás a mulher do teu próximo” (Ex 20,13-14).
Não encontramos nenhuma notícia, nenhum questionamento de Abiatar, sacerdote levita contra os pecados cometidos por Davi. Nem mesmo uma só palavra de Sadoc, sacerdote de Jerusalém. O questionamento vem por meio de um profeta ligado à casa real: Natã. Foi ele que profetizou o triunfo da promessa real (2Sm 7,12-13). Sua participação foi decisiva no jogo sucessório ao trono real. No reinado de Salomão, seus filhos recebem importantes cargos administrativos (1Rs 4,5). O profeta Natã surge como homem de elevado prestígio na corte de Salomão. Diante do prestígio do profeta é natural que Davi assumisse seus erros publicamente (jejum, deitar-se sobre a terra) e que sofresse o castigo por seus atos (a criança morre pouco depois de nascer). O arrependimento do rei foi o suficiente para o restabelecimento da justiça e continuidade da dinastia com o filho seguinte de Davi.
Natã se levanta contra os crimes praticados por Davi, segundo a parábola dita aos ouvidos do rei.
Violência contra o justo e dono de uma só ovelha.
“O SENHOR enviou Natã a Davi. Chegando Natã a Davi, disse-lhe: Havia numa cidade dois homens, um rico e outro pobre” (2º Sm 12:1).
O encontro entre o Rei (política) e o profeta (religioso) não revela nenhuma originalidade do Oriente. O profeta começa com uma história por demais ingênua, um fato do dia-a-dia: um homem que tinha uma só ovelha, um rico e um pobre. Como tudo que envolve rico e pobre, os ouvintes já se preparam para uma conclusão costumeira: “a corda sempre quebra do lado mais fraco”. O pobre sairá perdendo. Isso nos convida a ficar atento ao desenrolar da narrativa.
“Tinha o rico ovelhas e gado em grande número” (2º Sm 12:2).
O homem rico tem sua riqueza construída no campo. O texto destaca que ele possuía muitíssimas ovelhas e vacas. Era comum que as famílias possuíssem uma ou duas vacas para o sustento familiar. Com o leite de uma vaca é possível alimentar muitos filhos. Não temos dúvida que o nosso homem rico era um latifundiário.
“mas o pobre não tinha coisa nenhuma, senão uma cordeirinha que comprara e criara, e que em sua casa crescera, junto com seus filhos; comia do seu bocado e do seu copo bebia; dormia nos seus braços, e a tinha como filha” (2º Sm 12:3).
Esse e o próximo versículo estão no centro da parábola. Vemos nele a situação em que vivia o pobre e a importância da única riqueza: a ovelha. Era comum nas tradições tribais garantir o mínimo de sustento para cada pessoa.
Na parábola, a ovelha é apresentada como parte da família. O pequeno animal passa por uma “humanização”. A ovelha tinha o necessário para viver (o pão), mas também tinha o afeto e proteção (o colo). A ovelha é apresentada não como propriedade, mas como parte da família, fora criada “como uma filha”.
A parábola toca o coração de Davi que certamente nos tempos de sua juventude conheceu na intimidade, com os trabalhos do campo, as relações entre pastor e ovelha. O profeta Natã toca no mais profundo das emoções, nas lembranças comuns do rei Davi.
“Vindo um viajante ao homem rico, não quis este tomar das suas ovelhas e do gado para dar de comer ao viajante que viera a ele; mas tomou a cordeirinha do homem pobre e a preparou para o homem que lhe havia chegado” (2º Sm 12:4).
O desfecho da parábola é dramático. Para cumprir o preceito da boa hospitalidade, o rico utiliza-se, não de suas posses, mas rouba um bem essencial do pobre: toma posse da única ovelha. Embora o texto não explique como isso aconteceu, mas ficou registrado o sistema de violência feito pelo rico proprietário: a ovelha tornou-se refeição de um desconhecido. O bem essencial foi expropriado. O teor da violência ficou registrado na própria fala de Davi:
“Então, o furor de Davi se acendeu sobremaneira contra aquele homem, e disse a Natã: Tão certo como vive o SENHOR, o homem que fez isso deve ser morto. 6 E pela cordeirinha restituirá quatro vezes, porque fez tal coisa e porque não se compadeceu” (2º Sm 12:5-6).
É claro que não se trada de restituir quatro vezes o roubo. Está em jogo a prática da justiça. Mesmo pagando com quatro ovelhas a situação original não encontra meios para recompor-se. O crime foi praticado e foi além de uma relação meramente econômica. Do mesmo modo como Davi fizera com Urias (colocando-o para morrer em batalha) e a Betsabeia (apropriando-se do seu corpo) não passou de uma mera compensação econômica. Está em jogo o restabelecimento da Aliança com o Eterno.
Conclusão:
A parábola de 2Sm 12,1-4 está inserida num contexto maior, que vai do capítulo 10 ao 12. Os fatos relacionam os constantes enfrentamentos entre Israel e Moab. Há um escândalo em pleno ambiente de guerra,
A atitude de Davi - permanecer em casa e “bisbilhotar” a mulher do próximo – em nada condiz com a imagem idealizada desse rei. Suas atitudes não são em nada condizentes com o rei escolhido por Deus,
Urias, sendo um heteu, é mais fiel que o israelita Davi. Davi não tem escrúpulo nenhum de ter relações com a mulher de seu servo. Urias, permanecendo em solidariedade com os soldados, sacrificou o sexo, mesmo com sua esposa,
O texto proclama não o romance, mas a opressão de uma mulher. Podemos registrar: sua beleza é manipulada para justificar a paixão do rei – de vítima para réu/sedutora (tomar banho e ser bela não pode ser pecado); sexo contra a sua vontade; seu estado de viuvez,
Críticas ao sistema da monarquia. A monarquia nunca foi um consenso em Israel, este é o motivo das criticas de alguns grupos desejosos e influenciados pelo tribalismo,
A crítica proposta pela parábola se perdeu no tempo, mas não se perdeu a voz crítica dos profetas pela justiça (Amós, Oséias, Miquéias e Isaías),
A defesa do pobre não se perdeu. Ela continuará na pregação de Jesus (Mt 5).
[1] Cf. De Andrade, William César, A parábola do pobre e sua única ovelha (2Sm 12,1-4), In EstBil, 92, p. 27-36. Lamadrid, Antonio González, As tradições históricas de Israel, p.81-85.
[F1] Cf.: VALLER, S., O Rei Davi e “suas”mulheres. In: BRENER, Athalya (Org.), Samuel e Reis: a partir de uma leitura de gênero, p. 167.
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Notas/ITESP – LitDeutr – frizzo – Maio/2017
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